Advogada transexual de SP motivou aprovação de nome social na OAB
Foto: Marcelo Brandt
Márcia Rocha posa em frente ao Fórum João Mendes, no Centro de São Paulo.
Em 2013, a advogada Márcia Rocha palestrava no interior de São Paulo sobre direitos humanos e diversidade sexual, como representante da Ordem dos Advogados do Brasil. Ao final da conferência, foi questionada por uma das pessoas da plateia, por qual razão seu nome não constava nos quadros da OAB.
Membro da Comissão de Diversidade e Combate à Homofobia da Ordem desde 2011, ela sempre se apresentou ao público respeitando sua identidade de gênero. No sistema da entidade, porém, constava apenas seu nome de registro.
“Foi até uma coisa meio humorística. Realmente não tem Márcia Rocha mesmo. Poxa vida, parece que sou uma fraude, porque a pessoa procura e não me acha. Isso aconteceu duas vezes. Era uma contradição muito grande. Dava a impressão que a OAB estava sendo conivente com uma falsidade ideológica”, recorda.
O fato vivido, ao ser narrado para outro colega da entidade, gerou o pedido para que advogados travestis e transexuais de São Paulo tivessem o direito ao uso do nome social. Feita em 2013, a demanda acabou sendo aprovada nacionalmente em maio deste ano. A OAB tem o prazo de 180 dias para adaptar o sistema – o que deve ocorrer a partir de janeiro de 2017. “Pode ter certeza que logo no comecinho do ano eu vou pedir”, garante.
Formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Márcia diz ter consciência de sua identidade feminina desde criança. Aos 14 anos começou a tomar hormônios, mas foi convencida pelo pai, que notou a alteração física, a interromper o processo.
“Eu sou trans desde pequena, mas fiquei escondida no armário a vida inteira. Aos 14 anos meu pai percebeu, eu comecei a tomar hormônio, ele viu, me levou no médico, e eu tive que contar. Eles me convenceram a ficar no armário muito tempo”.
Tal permanência, entretanto, não era absoluta. Márcia atendeu à determinação dos pais, mas nunca escondeu de suas parceiras a transexualidade. Aos 45 anos, com a carreira estabelecida, após dois casamentos e com uma filha, diz que abandonou o “terno e gravata” que lhe foram impostos, e decidiu assumir publicamente sua identidade de gênero.
“Coloquei próteses, já tinha os seios desenvolvidos, mas fiz mais umas mudanças, e aí não tinha mais como esconder. A OAB me convidou para fazer uma palestra, eles gostaram e me chamaram para fazer parte da Comissão de Diversidade e Combate à Homofobia.”
Garantias
Embora não se recorde de ter vivido situações de preconceito no meio profissional, ela defende o nome social como uma segurança.
“Eu tenho tido uma experiência muito boa em cartórios, delegacias, um respeito muito grande. Não tive problema em nenhum desses ambientes. Eu posso dizer, olha, me chame de Marcia, mas é uma coisa informal. Você ter um amparo legal do uso desse nome é bastante importante.“
Márcia acredita que a regulamentação da Ordem é um marco no cenário nacional e tende a ser um caminho na garantia de direitos à população trans.
“Pela OAB ser uma entidade extremamente técnica do direito, o fato de ter aceito o uso do nome social, torna-se impossível para qualquer outra entidade de classe argumentar contra. Acho que foi extremamente importante. Cada passo que se dá na direção da igualdade, liberdade, do direito, da saúde, são passos importantes para uma população que sempre foi tão discriminada, tão marginalizada. E ainda é”, pondera.
Foto: Marcelo Brandt
Márcia Rocha na saída do Fórum João Mendes, no Centro de SP. Prédio passa por reforma.
Transfobia
Dentro desse contexto, a advogada avalia com benevolência a postura de seus pais, que a impediram de viver conforme sua identidade de gênero por mais de três décadas.
“Se aos 14 anos eu tivesse batido o pé enfrentado meu pai, falando que eu ia continuar, provavelmente não seria nada. Não seria advogada, não seria empresária, não falaria línguas porque a sociedade não permitiria. Talvez eu não estivesse nem viva. Está mudando, faz parte da nossa luta conscientizar as pessoas de que somos seres humanos com direitos iguais aos de qualquer outra pessoa. Temos direito à dignidade, ao respeito, a estudar, trabalhar.”
À frente de quatro empresas, e terminando uma pós-graduação em diversidade sexual, ela vive feliz ao lado da atual mulher e da filha, e sonha com uma sociedade livre de preconceitos.
“Eu nunca me apaixonei por um homem. Isso é uma coisa que inclusive gera uma confusão muito grande entre orientação sexual e identidade de gênero. Eu sempre brinco que eu sou uma travesti lésbica. Saí com homens, tentei namorar até, mas não conseguia, não era, não adianta. A gente fica confusa, até. Mas eu posso ser eu, eu posso gostar do que eu gosto, não tenho que fingir nada. O ser humano é diverso, múltiplo, não tem que ter caixinhas, regras, rótulos. (…) Ninguém é obrigado a gostar da minha existência. Mas respeite.”