Inflamado por pastor, criança trans de 12 anos tem casa apedrejada em cidade da Bahia

Transfóbico mobiliza evangélicos para que menino tenha nome social nego pela escola, mesmo sendo direito previsto pela lei brasileira.

Janaína e o filho: apedrejados pela transfobia. (Foto: Ingrid Martins/Correio24Horas)
Janaína e o filho: apedrejados pela transfobia. (Foto: Ingrid Martins/Correio24Horas)

De duas semanas para cá, já são quatro madrugadas que Janaína Britto, 40 anos, é acordada pelo barulho de gritos e pedradas nas janelas de casa. O alvo dos agressores é o filho dela, uma criança de apenas 12 anos que dorme em um dos dois quartos e escuta tudo o que acontece.

Os apedrejamentos começaram quando Janaína decidiu lutar para que o filho, um menino trans, seja chamado pelo nome social (nesta reportagem, ele será identificado por R). O uso de nome social para menores de 18 anos nas escolas é um direito reconhecido por lei desde 2016 mas que, em Poções, no sudoeste baiano, não tem sido respeitado.

Segundo reportagem do site Correio24Horas, a escola municipal onde R. estuda diz precisar de uma ordem da prefeitura de Poções para que o tratamento dispensado ao garoto mude. Procurada por Janaína, a vereadora Larissa Laranjeiras (PCdoB) apresentou um Projeto de Lei (PL), há um mês, que propõe que as pessoas trans sejam chamadas pelos nomes sociais nas escolas. O projeto não foi posto em votação.

Ao descobrir que a proposta seria lida na noite de 23 de maio, um pastor da cidade conclamou a comunidade evangélica: “Caso você não tenha o compromisso, estaremos um monte de evangélicos na Câmara. Para que os vereadores se sintam inibidos a não votar nessa aberração”.

A chamada surtiu efeito, pois evangélicos compareceram à Casa Legislativa. O pastor ficou em pé, em um canto. No outro, estava R., acompanhado pela mãe e duas amigas. Embora o projeto fosse apenas ser lido, os religiosos se anteciparam.

Há vereadores que já indicaram publicamente que se o projeto for para um pleito, serão contrários. Um deles afirmou, na sessão de segunda-feira (30), que não poderia “receber imposição de ninguém”, citou a Bíblia e concluiu que ‘sua ideologia deve ser respeitada’.

Os ataques contra R. são acompanhados por organizações como a Aliança Nacional LGBTI, a Associação de Famílias Homotransafetivas e a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB – Bahia. Para Janaína Abreu, membro da comissão, os ataques contra o garoto de 12 anos se configuram em “racismo por transfobia”. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal enquadrou a transfobia como um crime de racismo.

Transfobia afasta crianças trans da escola

“Não sou uma aberração”, diz menino trans. (Foto: Ingrid Martins/Correio24Horas)

Janaína não acha que sejam só os evangélicos que agridem a ela e ao seu filho. O ódio plantado pelo pastor contaminou gente já disposta a odiar. E foi a força desse sentimento que quebrou uma das janelas da casa dela, na madrugada da última quarta-feira (02), e aprisionou a ela e ao filho. Antes, os ataques tinham assustado, mas não deixaram provas físicas. A polícia chegou tarde demais para encontrar os responsáveis – no dia seguinte.

À tarde, estava prevista uma reunião na escola onde R. estuda. Apesar do horror da madrugada, Janaína optou por ir.

“E foi muito estranho. Foi ali que consegui entender meu filho. Quando a professora dele perguntou: A mãe de A. (nome de batismo de R. ou ‘nome morto’, como pessoas trans chamam o nome ao qual abdicam por não representar suas identidades de gênero) está aí? Pensa numa dor que me deu”, conta.

Quando R. comunicou, há três meses, a identidade de gênero dele, Janaína desconfiou da violência que estava por vir. Uma das primeiras decisões dela foi recolher documentos que, teoricamente, garantiriam a R. o nome. O principal deles era uma determinação do Ministério da Educação, a instância educacional do Brasil, em 2018, que autorizou o nome social de trans nas escolas, para minimizar uma das faces da violência contra essas pessoas.

O MEC prevê que basta os representantes legais de estudantes solicitarem na escola a alteração do nome. Toni Reis, pós-doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná, participou da formulação do parecer do órgão e garante que a identidade de gênero do filho de Janaína deve ser respeitada – não só por humanidade, mas porque a lei obriga.

O pesquisador é diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI, que já notificou extrajudicialmente a Secretaria de Educação de Poções. “Os gestores estão ignorando. Se não formos atendidos, acionaremos o Ministério Público”, explicou Amanda Souto, advogada integrante das associações Aliança Nacional LGBTI e das Famílias Homotransafetivas.

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a violência afasta as pessoas trans da formação educacional: 56% delas não terminam o Ensino Fundamental.

Desde o dia em que teve o direito negado pela escola, essa estatística é um dos temores de Janaína. O filho, até o momento, faz questão de ir às aulas. “Ele não é de família rica. Se não estiver bem na escola, não vai ter portas abertas”.

A reportagem tentou contato tanto com a escola frequentada por R., quanto com a Secretaria Municipal de Educação. As ligações não foram atendidas.

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