Integrante do Porta dos Fundos, o ator Luis Lobianco está com uma nova peça, que estreia em primeiro de março no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio.
O espetáculo “Gisberta”, dirigido por Renato Carrera, é baseado na história da transexual Gisberta Salce Junior, uma imigrante brasileira de 45 anos, que há 11 anos, despertava Portugal para a crua realidade da intolerância e do ódio contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O assassinato de uma transexual no Porto chocava a sociedade. Agredida e violada sistematicamente por 14 adolescentes durante dias, seu corpo foi encontrado no fundo de um poço de 15 metros.
Lobianco esteve em dezembro com “Porta dos Fundos “” Portátil” em Portugal e aproveitou a viagem para aprofundar a pesquisa sobre a transexual.
Foto: Arquivo I Panteras Rosa
Brasileira Gisberta foi morta em 2006 por um grupo de 14 adolescentes entre 12 e 16 anos.
Gisberta transformou-se em símbolo da discriminação múltipla: imigrante ilegal, transexual, prostituta, sem-teto e soropositiva. Seu assassinato causou um profundo impacto na sociedade portuguesa. Gerou o debate sobre a transfobia, mudou o olhar para as questões da igualdade de gênero. Abriu o caminho para transformações que garantiriam maior inclusão e direitos LGBT.
“O assassinato da Gisberta estabeleceu um antes e um depois em Portugal. Mudou a maneira como a sociedade olhava para as mulheres trans, mudou o modo como a imprensa cobria as transexuais, estimulou a criação de leis que tratassem da igualdade de gênero”, afirma o ativista português Sérgio Vitorino, do movimento social Panteras Rosa.
Nos anos que se seguiram à morte da brasileira, em 22 de fevereiro de 2006, o legislativo português criou uma série de leis voltadas para a igualdade de gêneros, com o objetivo de garantir a pessoas trans maior acesso à Justiça, à educação e ao emprego. Além disso, foi aprovada a concessão de asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição.
“Portugal transformou-se num dos países mais avançados do mundo no tratamento à igualdade de gênero. As leis criadas nos últimos 10 anos possibilitaram que um número grande de homens e mulheres trans conseguissem se integrar à sociedade”, explica Nuno Pinto, investigador do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e diretor da associação lusa Ilga (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgênero).
Medo da violência
Gisberta nasceu em São Paulo, caçula de uma família com oito filhos. Ainda na infância dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua sexualidade. Após a morte do pai, confessou à família, ainda na adolescência, que gostaria de ser mulher. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França.
Foto: Arquivo I Panteras Rosa
Passeatas e manifestações públicas lembram o assassinato da brasileira durante os anos.
Mais tarde, já depois de realizar tratamento hormonal e fazer implante de silicone nos seios, Gisberta mudou-se para o Porto, no Norte de Portugal. Rapidamente enturmou-se na cena LGBT local. Fazia apresentações em bares e boates. A vida como artista, contudo, não gerava dinheiro suficiente para pagar as contas. Como complemento de renda, recorreu à prostituição.
A imigrante brasileira possuía visto de residência e adaptou-se à vida em Portugal. Os contatos com a família eram raros. Com o passar dos anos, no entanto, sua situação começou a se deteriorar.
Os sinais no corpo de que era portadora do vírus HIV impossibilitaram a brasileira de se sustentar pela prostituição. O nome masculino e o corpo de mulher impossibilitavam que obtivesse trabalho. Desempregada, não conseguiu renovar o visto de residência e passou ao status de imigrante ilegal. Sem dinheiro para pagar as contas, teve de deixar o apartamento em que morava no Porto.
Depois de passar por alguns hospitais para tratar de doenças provocadas pelo vírus do HIV, encontrou abrigo em um prédio em obras abandonado no Porto. No fim de dezembro de 2005, três adolescentes começaram a frequentar o edifício para pichar suas paredes. Um deles reconheceu Gisberta, que havia improvisado um barracão com seus pertences no local, agora seu lar.
Filho de uma mulher que se prostituía, Fernando conheceu Gisberta quando tinha a idade de 6 anos e ficava aos cuidados de uma babá que amparava crianças nessa situação. A brasileira era conhecida dessa babá e passou a relacionar-se com a mãe do garoto.
Fernando e seus dois amigos frequentavam a escola e uma instituição administrada pela Igreja Católica chamada Oficina de São José. As visitas passaram a ser regulares, e Gisberta confidenciou que estava debilitada pelo HIV e o consumo de drogas ‘pesadas’, em especial cocaína. Comovidos, eles passaram a levar comida para ela e chegaram até mesmo a cozinhar no prédio abandonado, segundo consta no processo que tratou do crime.
Algum tempo depois, os garotos contaram a colegas sobre Gisberta, que descreveram como “um homem que ‘tinha mamas’ e ‘parecia mesmo uma mulher'”. As visitas, que até então eram solidárias, transformaram-se num incompreensível ato de violência extrema e gratuita. Os 14 jovens – entre os 12 e os 16 anos – dividiram-se em grupos que revezavam-se para espancar, violentar e humilhar a brasileira.
Durante três dias, Gisberta foi agredida a pedradas, pauladas e chutes. Foi sexualmente torturada com o uso de pedaços de madeira e teve o corpo queimado com cigarros. Entre 21 e 22 de fevereiro, os jovens voltaram ao prédio abandonado. A brasileira não respondia a qualquer estímulo. Ao julgarem que estava morta, planejaram como desaparecer com o corpo.
Primeiro pensaram em queimá-lo, mas desistiram por medo de que a fumaça atraísse a atenção de seguranças que trabalhavam num parque próximo. Depois imaginaram enterrá-lo, mas não tinham as ferramentas necessárias. Então, optaram por atirá-la ao fosso do prédio, que estava cheio de água. Gisberta estava inconsciente, mas ainda viva. Morreu afogada.
‘Brincadeira de mau gosto’
O corpo de Gisberta foi descoberto no mesmo dia. Um dos adolescentes confessou o crime a uma professora da escola em que estudava. No dia seguinte, os jornais tratavam do assassinato da “travesti” e da “imigrante sem-teto” no Porto.
O caso ganhou proporções inéditas na mídia e na sociedade portuguesas nos meses seguintes. Associações de defesa dos direitos LGBT organizaram manifestações pelo país e fizeram vigília em frente ao prédio onde Gisberta fora assassinada. A imprensa acompanhava todos os desdobramentos do caso, enquanto lutava contra os próprios estereótipos sobre transexuais.
“No começo, para a imprensa a Gis era ‘o Gisberto’, um trans soropositivo morto. Não havia fotos dela nas reportagens, apenas os estereótipos. Nós fizemos uma campanha, conseguimos fotos e distribuímos para os jornais e TVs. Foi assim que ela ganhou uma cara, foi humanizada e passou a ser tratada melhor com o passar dos meses”, conta Sérgio Vitorino.
A autópsia do corpo da brasileira confirmou lesões na cabeça, pescoço, membros inferiores e superiores, laringe e traqueia, abdômen, intestinos e rins. Além disso, identificou múltiplas equimoses, infiltrações hemorrágicas, escoriações e infiltrações sanguíneas. Mas a causa mortis foi afogamento, o que ajudou os acusados.
Os menores, que antes tinham sido acusados de homicídio qualificado, tiveram a acusação alterada para ofensas corporais qualificadas. O único que poderia ser julgado como adulto foi o mais velho, que tinha 16 anos – mas o restante do grupo testemunhou que ele apenas assistiu às agressões, mas não chegou a participar.
Ele, então, foi condenado a oito meses por omissão de auxílio, ou seja, por não ter ajudado a uma pessoa que corria risco de morte. Entre julho e setembro de 2007, apenas um ano e meio após o assassinato, todos estavam livres.
“O juiz disse, textualmente, que o assassinato foi ‘uma brincadeira de mau gosto de crianças que fugiu ao controle’. Gisberta foi amarrada em um pedaço de madeira e atirada ao fosso, mas o julgamento, no fim, determinou que quem a matou foi a água, e não as pessoas que a atiraram lá”, recorda Vitorino.
A frustração com o resultado do julgamento mobilizou os movimentos em defesa da igualdade de gênero. Leis de proteção a homens e mulheres trans foram aprovadas. Desde 2011, para que uma pessoa consiga mudar o nome e gênero em seus documentos basta um parecer médico.
No Brasil, a cirurgia de readequação sexual não é necessária, mas a alteração não é tão simples. É preciso ter laudo psiquiatra e psicológico, além do testemunho de amigos de que a pessoa é tratada pelo nome que escolheu.
“Nos últimos anos, Portugal passou a enxergar os transexuais com um olhar humano. Quando vemos uma notícia sobre homens e mulheres trans na mídia, na maior parte dos casos é sob a perspectiva dos direitos humanos. Ainda existe um longo caminho a percorrer em muitos aspectos, mas houve uma evolução notável nessa última década”, avalia Nuno Pinto.
“Claro que o caso Gisberta tem um papel de destaque nessas mudanças. A história dela está presente no fortalecimento da causa LBGT em Portugal, no amadurecimento da mídia, nas leis que foram aprovadas. Houve um antes e um depois da Gisberta”, avalia Vitorino.
A história da brasileira foi transformada em peça de teatro, em documentário e na canção Balada de Gisberta, composta pelo português Pedro Abrunhosa e interpretada por Maria Bethânia.
Seu corpo está enterrado em São Paulo. Mas sua presença ainda é marcante em Portugal, onde se transformou numa bandeira para a igualdade de gênero e os direitos humanos.