“Quem sou eu?” foi a primeira pergunta. “Quem sou eu para cantar Gal Costa?”. Filipe Catto reagiu com hesitação ao convite do SESC para que preparasse um tributo a Gal no início deste ano: “Fiquei emocionada, mas pensei: ‘será que precisa?'”
Instigada, a cantora gaúcha partiu em direção a uma jornada poética, a partir de um chamado intuitivo – ou espiritual: “Minha pomba-gira bateu no meu ombro e falou: ‘você para com essa síndrome de impostora, você tem 15 anos de carreira, você é uma cantora e você pode cantar Gal Costa'”.
Agora, quase seis meses após sua estreia, o projeto Belezas São Coisas Acesas Por Dentro, pensado inicialmente como um show, vira disco nas mãos de Filipe Catto e da Joia Moderna Discos. Mais que um recorte do celebrado tributo de Filipe a Gal – a quem a artista chegou a conhecer ‘nos camarins da vida’ -, trata-se do registro poderoso e verdadeiro da própria Catto em sua jornada de autodescoberta:
“Eu tinha rascunhado aquelas ideias, ensaiado aquelas músicas, mas aquela sensação de quando botei o figurino, quando me vi no espelho com aquela imagem, quando eu subi no palco e enfrentei todas as minhas disforias, e cantei praticamente nua em cena… aconteceu alguma coisa ali.”
Com 10 faixas e lançado nesta terça-feira (26), o álbum [ouça após o texto] reúne hits que ganharam o mundo na voz de Gal. Em um cenário onde tributos à obra da cantora baiana, morta em 2022, abundam, Catto se destaca por trazer à homenagem um diálogo com a própria trajetória por sua sexualidade, sua sensualidade e pela afirmação de seu lugar no mundo:
“Queria cantar os clássicos da Gal, tipo ‘Vaca Profana’, ‘Vapor Barato’, ‘Divino Maravilhoso’, mas também as músicas que falavam de mim, após todo esse momento da minha compreensão e afirmação de gênero. Essa é a Gal para mim. Ela tem uma coisa de uma afirmação da feminilidade visceral e poderosa e sexual e intensa, extremamente quebradora de paradigmas, que eu, de certa forma, humildemente, senti na pele na minha trajetória nos últimos tempos.”
Assim, Filipe ainda inclui no álbum os momentos mais pessoais do show – aqueles que refletem sua própria história. É o caso de “Oração da Mãe Menininha”, “Nada Mais” e “Sem Medo Nem Esperança” – faixa que, segundo ela, traduz bem e melhor uma parte difícil de sua trajetória nos últimos tempos.
Beleza que acende
Quando o projeto chegou para Filipe no início do ano, ela estava enfrentando um momento de esgotamento – ou uma “ressaca” aos anos anteriores, como ela própria define. Em meio às gravações de seu quarto álbum de estúdio, com previsão para sair no próximo ano, ela acabou entrando em um processo depressivo ao qual resistiu durante os anos mais duros da pandemia.
“Quando a pandemia passou eu caí num processo depressivo e bastante concreto – isso durante a gravação do disco. E eu não tava mais conseguindo dar conta daquele projeto, eu precisava de um break. E esse projeto com a Gal veio meio como um bote salva-vidas. Foi, literalmente, o que me tirou do fundo do poço.”
De cima do palco, de frente com Gal, Catto precisou encarar a si própria e usou a homenagem para se reconectar a uma paixão pela performance, pelo palco, pela cena – ‘uma injeção de tesão em mim, porque eu tava praticamente uma filhinha da Courtney Love, me arrastando pelos bueiros de São Paulo, fazendo tudo o que é tipo de coisa que não presta”.
Despretensiosamente, a montagem do show – e do álbum – acabou se encaminhando para uma leitura mais roqueira de Gal. Acompanhada de um power trio Michelle Abu (bateria), Fábio Pinczowski (guitarra e direção musical) e Gabriel Mayall (baixo), Catto levou para o palco suas questões em forma de música – “O que é vivenciar essa deusa de divinas tetas? Essa vaca profana? Essa tigresa?”
A resposta para as perguntas veio a partir da interpretação de um show a partir de uma leitura bastante individual do repertório, que excede à própria musa inspiradora e encontra paralelos também nos emblemáticos compositores de Gal, como Caetano, Arthur Nogueira, Antônio Cícero, Lirinha, Júnior Barreto, Dorival Caymmi e Gilberto Gil.
Para além da música, estende a pesquisa também para além do mapa estético da própria Gal Costa: “Quando resolvi fazer o show eu falei para a Alma Negrot que não queria reproduzir um figurino da Gal. Eu não quero estar vestida de Gal, quero estar vestida de Cher [risos], porque de certa forma a imagem da Cher me remetia à languidez, à sensualidade da Gal, sem que eu necessariamente tivesse que fazer uma paródia da Gal em cena, sabe?”
Debruçada sobre um universo de Gal Costa, Filipe encontrou mesmo foi a si própria, visceral e elevada, tanto em cena quanto no estúdio: “uma das coisas mais divertidas que já fiz.”
“Acho que a gente não pode desprezar certas experiências de vida, mas de fato o Beleza são Coisas Acesas por Dentro foi o trabalho que me pegou pelo cangote me tirou do fundo do poço, me colocou de volta no lugar que eu sou que eu sou apaixonada, que é o palco”, diz Filipe.
Show e álbum físico
Após o lançamento em plataformas digitais nesta terça – data do aniversário compartilhado entre Filipe e Gal – Belezas São Coisas Acesas Por Dentro vai virar mídia física, CD e K7, além do vinil: “é muito simbólico porque é meu primeiro vinilzinho”.
“Acima de qualquer homenagem, sou em cena. Apesar de eu estar cantando um repertório da Gal – e ela tá muito presente ali, enquanto emblema, no fim das contas – é um show da Filipe Catto cantando suas músicas. Cantando seu repertório. A partir de agora, esse é meu repertório também.”
Ouça Belezas São Coisas Acesas Por Dentro, de Filipe Catto, abaixo: