
Em meio ao avanço de pautas conservadoras no Congresso Nacional, cresce a ofensiva legislativa contra o acesso de crianças e adolescentes trans a cuidados médicos especializados. Atualmente, pelo menos 20 projetos de lei tramitam na Câmara e no Senado com o objetivo de proibir procedimentos de transição de gênero nessa faixa etária — alguns deles prevendo penas de até 20 anos de prisão para médicos que realizarem tratamentos como bloqueio puberal ou hormonização.
A justificativa dos autores é, segundo eles, a proteção de menores, argumentando que adolescentes não teriam discernimento suficiente para tomar decisões permanentes sobre seus corpos. Contudo, especialistas alertam que tais propostas reforçam um ambiente de perseguição política e institucional, além de colocarem em risco a saúde mental e física de jovens trans ao negarem acesso a protocolos amplamente reconhecidos por entidades médicas internacionais.
Na semana passada, o Conselho Federal de Medicina (CFM) acirrou ainda mais esse cenário ao publicar a resolução 2.427/2025, que proíbe expressamente o uso de bloqueadores de puberdade para transição de gênero em menores. O documento também eleva de 16 para 18 anos a idade mínima para hormonização e de 18 para 21 anos a exigência para cirurgias que possam causar infertilidade.
Diferentemente dos projetos em discussão no Congresso — que propõem mudanças no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente —, a resolução do CFM tem força normativa apenas no âmbito ético-profissional, podendo resultar em sanções como advertência, censura e até cassação de registro médico. Ainda assim, especialistas apontam que a medida pode ter efeito inibidor, criando receio entre profissionais e dificultando ainda mais o acesso ao cuidado trans-competente.
O presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, declarou em coletiva que a nova resolução precisa ser cumprida pelos médicos brasileiros. Já o conselheiro Raphael Câmara, relator da norma, evitou comentar os projetos de lei em tramitação.
As propostas no Congresso estão apensadas ao PL 3419/2019, do ex-deputado Heitor Freire (PSL/CE), que fixa em 21 anos a idade mínima para qualquer tipo de procedimento de transição. No Senado, o PL 501/2023, do senador Magno Malta (PL/ES), prevê penas entre 12 e 20 anos de reclusão para quem realizar cirurgias de transexualização em menores. O mesmo projeto impõe penas menores, mas ainda severas, para práticas como terapia hormonal, tratamento psicológico e ensino sobre identidade de gênero.
Para efeito de comparação, o Código Penal brasileiro prevê pena de 8 a 15 anos para estupro de vulnerável.
Apesar das justificativas parlamentares de proteção à infância, especialistas como Marco Aurélio Máximo Prado, da UFMG, alertam que tais medidas carecem de base científica e podem agravar o sofrimento psíquico de jovens trans. “Negar o acesso ao bloqueio puberal e à hormonização supervisionada empurra essas pessoas para a clandestinidade e para práticas sem segurança clínica”, afirma o pesquisador.
Essas propostas fazem parte de uma onda maior de iniciativas antitrans, que também visam proibir discussões sobre gênero em sala de aula, restringir o uso de banheiros e vestiários por pessoas trans e impedir sua participação em esportes. Embora ainda não tenham sido aprovadas no Congresso Nacional, mais de 70 leis com esse teor já estão em vigor em estados e municípios brasileiros.
Enquanto isso, o Programa de Atenção Especializado à Saúde da População Trans (Paes Pop Trans), anunciado pelo Ministério da Saúde em 2023 para ampliar o acesso à hormonização e ao bloqueio de puberdade no SUS, ainda não foi implementado.
Segundo defensores dos direitos LGBTQIA+, o Brasil vive um momento crítico em que avanços na saúde pública e no reconhecimento da diversidade de gênero estão sendo revertidos por medidas ideológicas. “Essas propostas não se baseiam em evidências, mas sim em preconceitos travestidos de zelo. E quem paga o preço são jovens vulneráveis, que precisam de acolhimento e cuidado, não de criminalização”, conclui Prado.