Túmulo de Madame Satã pode se tornar o primeiro patrimônio LGBTQIA+ tombado pelo Iphan
Proposta de pesquisador busca resgatar a memória da icônica figura da Lapa, enterrada em Angra dos Reis, e combater o apagamento histórico da comunidade no Brasil.

O túmulo de João Francisco dos Santos, o icônico artista da boêmia da Lapa conhecido como Madame Satã, pode se tornar o primeiro patrimônio LGBTQIA+ a ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O pedido de tombamento, protocolado pelo pesquisador Baltazar de Almeida, já foi aceito pelo Iphan, que iniciou os estudos técnicos no local.
O corpo do artista está sepultado no cemitério da Vila do Abraão, em Ilha Grande, Angra dos Reis (RJ). Ele viveu no local grande parte dos quase 28 anos em que esteve preso e escolheu a ilha para passar seus últimos anos de vida.
A iniciativa partiu de Baltazar de Almeida, morador de Angra dos Reis, ativista dos movimentos negro e LGBTQIA+ e estudante de Turismo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ele descobriu a ligação de Madame Satã com o território durante uma pesquisa para um roteiro turístico.
“A questão do resgate de memória me encanta muito, esse saber e voltar ao passado. Então eu juntei Madame Satã, Ilha Grande, o corpo que ainda não foi exumado e fui montando esse argumento para o Iphan”, explica Baltazar. “Eu sou de religião de matrizes africanas […] e sinto essa conexão.”
Para o pesquisador, a ausência de qualquer bem ligado à história LGBTQIA+ reconhecido oficialmente no Brasil é resultado de uma herança de homofobia. “Algumas histórias são lembradas e outras esquecidas ou apagadas. E quem são essas histórias que geralmente são nomes de rua, nomes de patrimônio e quais são as histórias que não têm esse local?”, questiona.
Em paralelo, Baltazar protocolou um requerimento para que o Iphan crie um departamento específico para o tombamento de patrimônios ligados à causa LGBTQIA+. “Sem isso, […] a história LGBT desse bem vai ser totalmente apagada ou diluída. Então a gente nunca vai ter dentro da história do país um patrimônio LGBT?”, aponta.
O Iphan confirmou o início dos estudos e informou que “a instrução de tombamento é um procedimento longo e criterioso, que envolve a elaboração de estudos técnicos”, podendo durar até 5 anos. Um abaixo-assinado online em apoio ao pedido já ultrapassou 800 assinaturas.
A controversa figura de Madame Satã

João Francisco dos Santos foi uma figura complexa da história brasileira. Ator, dançarino e drag queen, foi uma lenda da vida noturna da Lapa. No entanto, sua trajetória também foi marcada por crimes, como agressão e lesão corporal. Um dos casos mais conhecidos foi a morte do sambista Geraldo Pereira, em 1955, atribuída a Madame Satã após uma briga.
Nascido em Pernambuco, João Francisco teve uma infância trágica. Segundo o pesquisador, após a morte do pai, a família foi expulsa de suas terras e a mãe o trocou “por uma égua”. Aos 7 anos, foi levado por um homem que prometeu educação, mas o submeteu a um regime análogo à escravidão. Mais tarde, fugiu para a Lapa, no Rio, onde foi novamente explorado antes de ir morar na rua.
Foi nas ruas da Lapa que aprendeu capoeira com o malandro Sete Coroas e se tornou uma figura respeitada, mas também “brigão”. “Madame Satã era uma pessoa preta e abertamente homossexual, então tinha muito preconceito, e ele se envolve em diversas brigas com policiais”, conta Baltazar. Foi nesse período que passou a se travestir e se apresentar artisticamente, tornando-se uma lenda.

“Era uma figura que vendia muito jornal”, afirma o pesquisador. “A gente tinha um Brasil em que ser LGBT era crime, ser artista era crime, ser capoeirista era crime e ser preto era, no mínimo, problemático.”
Após passar 27 anos e 8 meses preso de forma intercalada, grande parte em Ilha Grande, Madame Satã decidiu voltar à ilha após sair da cadeia, pois a Lapa já não era a mesma. Lá, tornou-se “um contador de história” e continuou a participar do carnaval, mantendo a persona Madame Satã. “Eu acredito no axé e que as coisas acontecem quando têm que acontecer. Tudo isso está acontecendo porque Madame Satã permitiu”, conclui Baltazar.






