Ernesto Denardi, 21, não foi registrado logo que nasceu. Passou um ano sem certidão de nascimento, pois os médicos não sabiam enquadrá-lo como menino ou menina. É que seu corpo contava com pênis, mas, também, trompas.
Na dúvida, decidiram operar e retirar os resquícios do sistema reprodutivo feminino e tomar a decisão: seria menino. Um ano depois, começou a tomar testosterona, pois não tinha testículos.
Desde sempre, soube disso. “O que foi passado para mim era o que foi dito para os meus pais: que eu era um menino com uma malformação dos genitais. E cresci achando isso”.
O problema é que Ernesto não tem um defeito, ele é intersexo. Isso quer dizer que seu corpo tem características que fogem do padrão de masculino e feminino. Outubro é o mês da visibilidade intersexo.
Mas o que é intersexo, exatamente?
Antes, as pessoas intersexo eram chamadas de hermafroditas. “E existia um olhar muito mais patológico, se falava em distúrbio. Hoje, isso é visto diferente. São as pessoas com anatomia sexual ou reprodutiva que destoa do que é esperado de um corpo masculino ou feminino”, explica a Ana Karina Canguçu Campinho, psicóloga e doutora em saúde pública, que atende no Centro de Referência no Atendimento a Pessoas Intersexo do Hospital Universitário Professor Edgar Santos, em Salvador (BA).
Para entender melhor, é preciso pensar que, quando uma criança nasce, se diz se é menino ou menina com base em seus genitais (pênis e vagina) e no sistema reprodutivo (presença de útero e testículo) ou, ainda, geneticamente se diz que homens têm os cromossomos XY e mulheres XX.
No entanto, a pesquisadora norte-americana Ann Fausto Sterling levantou que 1 a cada 100 pessoas, na verdade, nasce com alguma característica fora desses padrões. Essas são as pessoas intersexo.
E isso pode acontecer de diferentes formas: cromossomos XXX, XXY, XYY, presença de genitais de um sexo com órgão reprodutivo de outro, alterações em glândulas –que leva a produção alterada dos hormônios que definem características físicas chamadas de masculinas ou femininas, entre muitas outras.
Na maioria dos casos, essas alterações não apresentam nenhuma consequência na saúde da pessoa e algumas podem não ser identificadas até a chegada da adolescência.
“Eu me sentia uma aberração”
O estudante Alexander Miller, 18, foi designado como menina por seus pais, apesar de sempre se sentir menino. Aos 12 anos, precisou fazer um exame que identificou que tem os cromossomos XXY e começou a notar as características físicas, como o fato de sua vagina ser fechada, não contar com um canal.
“Para mim, descobrir foi bem difícil, principalmente porque sou criado em uma família evangélica. Eu era visto como uma aberração. Cheguei a ouvir dos meus pais que sou um castigo de Deus”, conta.
Foi a internet que ajudou a se aceitar nos últimos anos. “Fui vendo que tem outras pessoas. Não é comum, mas não é anormal. E entendi que se Deus me fez assim, eu preciso aceitar”. A página Visibilidade Intersexo, criada em 2015 por Ernesto e um amigo, tem, hoje, 3.768 membros.
Cirurgia de “adequação” não é recomendada
A cirurgia realizada em Ernesto ainda bebê é bastante comum. Segundo Ana Karina Canguçu Campinho, tanto médicos quanto as famílias costumam optar por operar a criança logo que nasce, escolhendo se serão menino ou menina.
A psicóloga já foi favorável a isso, mas, atualmente, acredita que “a cirurgia deve acontecer somente havendo risco de vida. Olhando pelo lado da autonomia, a pessoa deve ter direito de definir sua própria história. Mas no ambulatório eu vejo como é difícil para a família lidar com isso. A sociedade cobra que a criança seja de um sexo ou outro”.
Ernesto e um grupo cada vez maior de pessoas intersexo lutam para que essa cirurgia seja proibida. Eles acreditam que a pessoa deve ter o direito de crescer com as características do próprio corpo e optar por escolher, ou não, algum dos gêneros quando crescer, sem passar por um procedimento cirúrgico que consideram desnecessário, que deixa cicatrizes, traumas e pode atrapalhar a sexualidade.
A ONU também é a favor de que a cirurgia não seja realizada e pressiona os países pela proibição. “Crianças intersexo não precisam ser consertadas. Elas são perfeitas exatamente como são”, diz o site da Organização.
Intersexo é sobre sexo, e não gênero
Sexo e gênero são termos normalmente confundidos. Enquanto o primeiro é comumente usado para falar sobre as características biológicas do corpo, o segundo define as características sociais das pessoas. O sexo masculino é definido pela presença de pênis, testículo ou cromossomos XY. Já o gênero masculino tem a ver com comportamentos comumente aceitos como de homem.
Quando se fala em pessoas intersexo, fala-se de biologia. Essas pessoas nascem com características sexuais ambíguas. Mas seu gênero pode ser o que escolherem: feminino, masculino ou outro.
Ernesto, por exemplo, foi criado também como menino, mas nunca se identificou com a escolha dos pais. “Eu nunca me identifiquei como menino nem menina. E, na adolescência, passei por umas questões complicadas. Tinha a igreja e a coisa de não ter certeza sobre meu gênero. Mas com 17, 18 anos, comecei a entender melhor. Hoje, não me identifico nem como homem nem como mulher”, explica.
Nem sempre a pessoa se identifica com a escolha dos pais
A analista de informática Denise Fernandes, 31, foi criada como menino, mas sempre se viu como mulher. “Na adolescência, meus pais me obrigaram a fazer uma cirurgia forçada para descer os testículos e me injetavam ‘vitaminas’, que suspeito serem hormônios. Mas meu corpo nunca desenvolveu as características masculinas, e eu sempre me vi como mulher. Há dez anos, um exame mostrou que eu tenho um útero subdesenvolvido e descobri que sou intersexo”, conta.
Mas, antes de saber, ela já tinha decidido viver como uma mulher trans, sem nem imaginar que seu corpo naturalmente tinha as características ligadas ao feminino. “Fui forçada ser criada como menino. Desde criança até o final da minha adolescência, eu apanhei de todas as maneiras existentes de meus pais por me comportar como menina”, diz ela.