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2020 já registra um triste recorde em assassinatos de travestis e transexuais

A Antra mostra, no mais recente levantamento, um recorde de assassinatos de pessoas trans de janeiro até agosto.

Fernanda Machado da Silva foi morta a pauladas em Rio Branco e polícia investiga o caso. (Foto: Arquivo pessoal)
Fernanda Machado da Silva foi morta a pauladas em Rio Branco e polícia investiga o caso. (Foto: Arquivo pessoal)

A transexual Fernanda Machado da Silva, de 27 anos, foi morta a pauladas, na Rua Minas Gerais, no bairro Preventório, em Rio Branco, no Acre. Segundo informações do Centro Integrado de Operações em Segurança Pública (Ciosp), a vítima estava em um ponto de prostituição quando foi abordada por duas pessoas.

A dupla se aproximou e começou a acusar a vítima de ter furtado um celular. Mesmo a jovem negando que tivesse feito o furto, as duas pessoas começaram a espancar a vítima com pedaços de pau.

Os suspeitos tiveram a prisão preventiva mantida pela Justiça do Acre e troca de mensagens entre os suspeitos comprova que os dois estão envolvidos no crime.

O crime aconteceu na madrugada do dia 25 de julho e entrou para uma lista que há anos traz vergonha ao país: a de assassinatos de transexuais e travestis. Segundo a ONG Transgender Europe, que fez um mapeamento de mortes da população trans entre 2008 e 2016 em 64 país, o Brasil ocupa o primeiro lugar do ranking das mortes, com 868 crimes no período. A diferença para o segundo lugar, o México, é gritante: o país teve 257 mortes no mesmo período.

Em 2020, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que divulga boletins bimestrais com os números de assassinatos dessa população, já mostra, no quarto e mais recente levantamento divulgado, um recorde no período computado até agora, de 1º de janeiro a 31 de agosto. Desde 2017, quando os boletins começaram a ser divulgados, o ano atual já teve o maior número de mortes para os primeiros oito meses do ano: foram 129 pessoas —todas elas expressavam o gênero feminino. Em 2019, no mesmo intervalo de tempo, haviam sido 76. Um aumento de 170%. Dados do Observatório Trans — ONG que faz mapeamentos sobre essa população e divulga os dados em parceria com a Antra — referentes a setembro e outubro mostram que, até agora, já foram mais 15.

“Tristemente, caminhamos para constatar que vamos bater um recorde em 2020. Fica evidente que não há ações concretas para erradicar a violência contra trans e travestis”, afirma Keila Simpson, presidente da Antra. Também segundo a entidade, 40% dos casos de transfeminicídio (quando uma mulher é morta por causa do seu gênero e por ser trans) do mundo ocorrem no Brasil.

Atualmente, não há levantamentos oficiais do governo sobre assassinatos de pessoas travestis e transexuais especificamente. Há dados sobre violências no geral contra a população LGBT compilados, anualmente, pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a partir de denúncias recebidas pelo Disque 100. Mas o recorte específico de assassinatos é feito por ONGs, como o Grupo Gay da Bahia, a Antra e o Observatório Trans.

Violência transfóbica aumentou com a pandemia

Para Keila, há uma série de razões que faz com que o aumento seja registrado. Primeiro, ela acredita que a pandemia trouxe uma situação de instabilidade emocional e tensão que pode ter culminado em violência contra as populações mais vulneráveis, como transexuais e travestis, muitas delas ainda indo para as ruas para trabalhar como profissionais do sexo.

Mas a presidente da Antra acredita que uma grande parcela de culpa por essa violência recai sobre os discursos oficiais das autoridades. Lembra que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) critica o que chama de “ideologia de gênero” desde o seu discurso de posse —o conceito é uma ideia deturpada do que significa a identidade de gênero e que acaba por gerar mais transfobia.

“E é um paradoxo porque, em 2019, quando divulgamos os dados em que numericamente havia uma diminuição, o [deputado federal] Eduardo Bolsonaro [PSL-SP] postou no Twitter o número e comemorou. Mas, quando aumenta, como agora, não tem um discurso, sinalização, frase, não tem tweet. Nada. Até porque o governo não está preocupado com a população trans e travesti”, afirma Keila.

Em 13 de janeiro de 2019, Eduardo Bolsonaro postou a notícia com o dado da Antra afirmando que “quando você faz uma política para todos, todos se beneficiam, inclusive todas as minorias. Dividir a sociedade só serve a políticos charlatões.”

Faltam punições e dados oficiais

Outro motivo que faz aumentar o número de assassinatos de pessoas travestis e transexuais, segundo Keila, é a certeza de impunidade. Segundo levantamento da Antra, entre os assassinatos compilados, a identificação e punição dos criminosos acontece em menos de 10% dos casos. “Não há nenhum esforço por parte das autoridades para isso. Em muitos dos casos, nem inquérito é instaurado”, lamenta Keila, ressaltando que há poucos dados oficiais sobre crimes contra pessoas LGBTQIA+ e, mesmo neles, não há recorte específico sobre travestis e transexuais.

Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Dennis Pacheco afirma que a falta de dados sobre a população LGBTQIA+ no país, desde os relacionados a crimes até registros populacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estão entre os maiores entraves para a criação de políticas públicas que possam proteger e ajudar essa população.

“O que custa colocar uma opção em um boletim de ocorrência para marcar qual a identidade de gênero e a orientação sexual da vítima? Teoricamente, nada. Esse é um custo político, não há interesse nisso pois se tratam de pessoas menosprezadas, inclusive por autoridades policiais”, diz Dennis.

O pesquisador lembra que, no ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia, sendo considerados crimes de racismo. “Mas foi simbólico. Na prática, essa criminalização não tem acontecido.”

Para ele, um grande avanço seria começar pelo mapeamento da população LGBTQIA+, a partir de uma pesquisa feita por um órgão público, para entender suas especificidades, como taxa de emprego, região onde estão mais concentrados. A partir disso, seria possível desenvolver políticas que a beneficiasse. Atualmente, como explica Pacheco, perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual não fazem parte das pesquisas populacionais.

“É um tipo de levantamento que custa caro, não se pode deixar apenas a cargo da sociedade civil. Por isso, deveria constar no censo do IBGE. Se não sair no próximo, será frustrante. Vamos ter que esperar mais dez anos por esse mapeamento”, afirma.

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